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Acidentes com cobras podem ser evitados com pesquisa e prevenção

A saúde vai muito além de estar livre de doenças, mas abrange um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e é reconhecida como um direito humano. O controle do risco de exposição a doenças e o acesso universal e igualitário à serviços de saúde devem ser garantidos pelos nossos governantes a toda população. Entretanto, a saúde e a sua garantia enquanto direito universal podem ser conceitos abstratos, que não passam de letras em um papel.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), agência internacional que coordena e impulsiona esforços para o controle de doenças ao redor do mundo, classifica um conjunto de 20 enfermidades como “Doenças Tropicais Negligenciadas” (NTDs – Neglected Tropical Diseases). Esse grupo de doenças apresenta uma semelhança singular: seu impacto sobre comunidades pobres. Um bilhão de pessoas são atingidas todos os anos por doenças como leishmaniose, dengue, doença de Chagas, etc. São pessoas que não vivenciam na prática o direito universal à saúde. Afinal, muitas dessas doenças poderiam ser evitadas ou tratadas com acesso a serviços básicos de saúde, higiene e saneamento.

Recentemente, a primeira doença não-infecciosa foi adicionada à lista das NTDs. Trata-se dos acidentes ofídicos, que são envenenamentos causados por picadas de serpentes venenosas. Os precários dados mostram que aproximadamente seis milhões de pessoas são picadas por serpentes venenosas todos os anos, das quais quase três milhões ficam com sequelas permanentes e 200 mil morrem. 

De acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN/SUS), é registrada uma média de 27 mil casos de acidentes ofídicos todos os anos no Brasil, os quais ocorrem principalmente nas regiões norte (32%), nordeste (25,7%) e sudeste (23,7%). O grupo de risco é formado por pessoas jovens, do sexo masculino, que exercem funções no trabalho rural, além de pessoas que vivem em regiões pobres, e com acesso limitado a serviços de saúde e educação. Vale ressaltar também a exposição das comunidades indígenas e ribeirinhas, além de crianças em situação de trabalho infantil em áreas rurais. 

Apesar do índice de letalidade ser relativamente baixo (ainda que expressivo para familiares e amigos que perderam um ente querido), os acidentes ofídicos causam graves reações no corpo e exigem serviços de saúde, incluindo internação por longos períodos, cirurgias e reabilitação. Situações mais graves podem evoluir para amputação, cegueira e falência renal, além de estresse pós-traumático. Dessa forma, os acidentes ofídicos geram um impacto econômico significativo ao sistema público de saúde, aos pacientes e à sociedade. Um estudo recente que avaliou esses custos na região Amazônica concluiu que, em 2015, a somatória dos recursos investidos no tratamento de acidentes ofídicos se aproximou de US$ 8 milhões.

A ocorrência desses acidentes está relacionada principalmente com três conjuntos de fatores: (a) socioeconômicos, isto é, índice de pobreza e porcentagem de pessoas que trabalham em áreas rurais; (b) fatores ambientais (chuvas, temperatura e cobertura vegetativa); e (c) fatores ecológicos, como o tipo e a quantidade de serpentes venenosas na região. Essas variáveis, juntamente com dados de envenenamento reportados em anos anteriores, são utilizadas para calcular a probabilidade de ocorrência de acidentes ofídicos em determinada região. Dessa forma, é possível prever e indicar medidas preventivas, como a disponibilização e a quantidade de soro antiofídico enviada a cada região do país, já que é o único tratamento eficiente para envenenamento por serpentes e deve ser aplicado dentro de pelo menos duas horas do acidente. 

No Brasil, nove milhões de pessoas vivem em localidades que ficam a mais de duas horas distantes de hospitais que disponibilizam o tratamento por soro antiofídico. Coincidência ou não, a maior parte dessas localidades coincide com áreas de alto risco de acidentes, como a região norte do país. Para mitigar ao máximo essa enfermidade, cumprindo as metas da OMS de redução de acidentes ofídicos pela metade até 2030, é necessário maior investimento para disponibilização de soro em mais localidades e transporte de vítimas até locais de tratamento. Além disso, investir em pesquisa de base e aplicada aumenta e muito a probabilidade de compreender melhor essa doença, e delinear ações locais e regionais para melhorar a qualidade de vida das pessoas mais atingidas. 

 

Referências

Ceron K, Vieira C, Carvalho PS, Carrillo JFC, Alonso J, Santana DJ. 2021. Epidemiology of snake envenomation from Mato Grosso do Sul, Brazil. PLoS Neglected Tropical Disease, vol. 15, nº 9, e0009737

Martín, G., Erinjery, J., Gumbs, R., Somaweera, R., Ediriweera, D., Diggle, P. J., Kasturiratne, A., de Silva, H. J., Lalloo, D. G., Iwamura, T., & Murray, K. A. (2021). Integrating snake distribution, abundance and expert- derived behavioural traits predicts snakebite risk. Journal of Applied Ecology, vol. 00, p. 1-13.

Gutiérrez JM. 2011. Snakebite poisoning in Latin America and the Caribbean: An integral view from a regional perspective. Boletín de Malariología y Salud Ambiental, vol. LI, Nº1, p. 1-16.

Magalhães SFV, Peixoto HM, de Almeida Gonçalves Sachett J, Oliveira SS, Alves EC, Dos Santos Ibiapina HN, Monteiro WM, de Oliveira MRF. 2020. Snakebite envenomation in the Brazilian Amazon: a cost-of-illness study. Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, vol. 1, nº 114(9), p. 635-642. 

Oliveira RADD, Silva DRX, Silva MGE, 2022. Geographical accessibility to the supply of antiophidic sera in Brazil: Timely access possibilities. PLOS ONE, vol. 17, e0260326

World Health Organization. 2017. Neglected tropical diseases. In: Neglected tropical diseases. Disponível em: https://www.who.int/neglected_diseases/diseases/en/ 

 

|Sobre a autora:

Eletra de Souza é bióloga e mestre em Biologia Animal. Atualmente, faz doutorado na Universidade de São Paulo, pesquisando sobre a ecologia do movimento de jararacas em uma área de Mata Atlântica, na região do Vale do Ribeira, estado de São Paulo. Sua pesquisa busca compreender períodos de maior atividade das serpentes na região, assim como o uso do hábitat e a probabilidade de encontro com seres humanos durante atividades agrícolas, no objetivo de contribuir para a mitigação de acidentes ofídicos na região.