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[Editorial] A ficção não científica do tratamento precoce: A Ivermectina

O período de pandemia causado pela COVID-19 tem modificado a forma como interagimos em sociedade e demais aspectos relevantes à nossa socialização, um deles consiste na transmissão de informação. Infelizmente, têm-se observado a divulgação de diversas informações incorretas, especialmente em redes sociais. Muitas pessoas e instituições apelidaram esse fenômeno de “infodemia”, uma onda de desinformação que pode gerar resultados tão catastróficos quanto um vírus.

O Ministério da Saúde (MS) tem adotado uma postura favorável ao tratamento precoce contra a COVID-19. Em 01/02/21 o site do MS postou em seu site uma nota onde indica o tratamento precoce para o combate a COVID-19, e faz referência ao artigo publicado na revista científica The American Journal of Medicine [1]. No qual, o texto traz a seguinte informação: “O conceituado The American Journal of Medicine, jornal oficial da Alliance for Academic Internal Medicine, traz em sua primeira edição de 2021 um estudo que indica a eficácia do tratamento precoce na evolução da COVID-19. A publicação afirma que, por meio de medicina preventiva e tratamento precoce, é possível evitar a piora do quadro clínico dos pacientes e diminuir o número de internações, bem como a evolução dos pacientes para UTI. A instrução publicada em artigo científico cita o sucesso na combinação de antivirais e vitaminas, incluindo zinco, azitromicina e hidroxicloroquina, amplamente utilizados no protocolo do Governo Federal para combater a pandemia inclusive” [2,3].

Porém, a declaração repercutiu negativamente entre médicos, cientistas e setores da sociedade que não defendem o tratamento precoce, resultando na retirada temporária do site do Ministério da internet. O mesmo aconteceu com o aplicativo criado para ajudar a combater a pandemia em Manaus, mas que qualquer um podia acessá-lo, que também foi retirado do ar após repercussões negativas, agora sendo utilizado somente para notificação de casos suspeitos e prováveis de COVID-19 [4, 5].

Uma das figuras de grande relevância da mídia brasileira, o jornalista e também colunista político brasileiro, Alexandre Garcia, defendeu este estudo e suas opiniões a favor do tratamento precoce são compartilhadas por diversos apoiadores na internet. Ele defende que o tratamento precoce é o que mais tem salvado vidas no Brasil, minimizando internações em hospitais, e acelerando a recuperação dos pacientes. O profissional ainda complementa dizendo que: “as pessoas querem ciência”, e pede para procurarem o então artigo da The American Journal of Medicine, citado pelo Ministério da Saúde. Ao ironizar as pessoas que não apoiam a estratégia de ‘‘tratamento precoce’’, ele diz com as seguintes palavras: “Está lá, está no jornal científico, como está lá no FDA o reconhecimento desde junho já, que em laboratório a Ivermectina anula completamente o coronavírus em 48 horas. E parcialmente 95%, por aí, em 24 horas. Está lá, é ciência! O que é que eu vou fazer, eu sei que não vão publicar, né? Eu não sei porque essa raiva da vida, isso é criminoso! Impedir que as pessoas se tratem ou tentar desinformar as pessoas para não se tratarem.

A afirmação do jornalista sobre a Ivermectina, citando o tal artigo científico, é o que vêm sendo falado por diversos cientistas há algum tempo sobre seu uso em laboratório (in vitro), porém a afirmação do jornalista apresenta equívocos. Esse medicamento apresentou eficácia apenas em células cultivadas em laboratório, e que, para apresentar algum tipo de eficácia em humanos, a dose aplicada deveria ser 100 vezes maior do que a dose máxima recomendada, e que essa dose máxima já seria 27 vezes maior que a dose mínima que é administrada [6]. Reforçamos aqui que essa administração poderia causar uma overdose caso fosse administrada em humanos, o que não é nada seguro.

Os testes in vitro são feitos com células humanas cultivadas em laboratório em uma plaquinha de vidro, quando se faz o teste com um medicamento, não existe interferência de outros agentes e reações paralelas como é dentro do nosso organismo. Por isso, os testes in vitro estão presentes na fase inicial dos testes de todos os medicamentos, e dependendo se sua resposta, saberá se seguirá para testes em animais e humanos. Como já mencionado anteriormente, a Ivermectina apesar de apresentar nos testes uma resposta positiva contra o vírus, não é seguro que siga para outros testes devido à dosagem muito alta aplicada, que é prejudicial ao ser humano. Além de que, como o ambiente desse tipo de teste é diferente do ambiente do corpo humano, nada garante que a Ivermectina terá o mesmo efeito para nós. Já que nosso organismo pode acabar inibindo a ação antiviral que foi apresentada no teste in vitro. Mas como já mencionado anteriormente e ressaltamos novamente, a dosagem necessária para inativar o vírus em testes in vitro é muito alta, e poderia causar sérios danos ao organismo humano.

Outro fator, é que segundo a bula de Ivermectina, o mesmo deve ser administrado em dose única, sendo que, caso necessário, o médico poderá prescrever mais de uma dose [7]. Atualmente médicos defensores do tratamento precoce indicam sua administração quinzenalmente.

Ainda sobre a Ivermectina, ressalta-se que um dos principais problemas é a automedicação. Visto que, apesar de sua bula indicar dose única, várias pessoas tomam diariamente, ou dia sim e dia não. A automedicação, sem recomendação médica e ainda mais sem comprovada eficácia, é um risco para a saúde de quem o ingere, sejam eles físicos (overdose) quanto psicológicos (a pessoa crê estar fazendo uma “profilaxia” segura e eficaz e, naturalmente, acaba se expondo mais ao vírus). Assim como vários médicos já alertam para o risco de seu consumo excessivo pode causar problemas hepáticos (no fígado) [8]. Outros estudos alertam também que seu uso além do indicado está relacionado a tremores, convulsões, letargias e desorientações [9].

Agora, falando em específico sobre o artigo da The American Journal of Medicine, ressaltamos que o mesmo foi aceito para publicação em 06 de agosto de 2020, porém só foi publicado com acesso aberto em 1 de janeiro de 2021. Ou seja, foi em um intervalo de tempo onde novas evidências surgiram sobre o uso do “tratamento precoce” e, consequentemente, conclusões do artigo aparentam ter sido extrapoladas diante de evidências mais recentes, devido à rapidez com que trabalhos estão sendo analisados com assuntos sobre o novo coronavírus. O artigo em si, é um artigo de revisão, isso quer dizer que não foi feito nenhum teste clínico, mas que apenas foram feitas análises de outros artigos já publicados sobre o assunto. O próprio título do artigo deixa em evidência que as conclusões ali apresentadas são resultados apenas das respostas fisiopatológicas do organismo humano. Em outras palavras, foi observado apenas como pacientes infectados pelo Sars-CoV-2 e que tomaram os medicamentos citados, responderam a esse “tratamento”. Essa conclusão do artigo é falha quando se analisa a falta de testes clínicos randomizados, com grupos controle e placebo.

Esses supostos tratamentos não são indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por diversas sociedades de infectologia ao redor do mundo, inclusive pela Sociedade Brasileira de Infectologia [10]. Além do Brasil, nenhum outro país do mundo indica o tratamento precoce contra a COVID-19. Estariam a OMS e sociedades de infectologia ao redor mundo erradas, mas o governo brasileiro, apesar de várias evidências contra o tratamento precoce, estaria correto em ainda insistir nisso? A onda de desinformação em nosso país é tão grande, que parece que finalmente o movimento anti-vacina chegou com força aqui, sendo impulsionado principalmente pelo então presidente Jair Bolsonaro e sua guerra política contra a China.

Por fim, ressaltamos que a “luta” contra o tratamento precoce não é uma raiva contra a vida, como apontam algumas pessoas, mas sim contra o uso indevido de medicamentos, para fins os quais não são atribuídos, pode (e vai) gerar consequência a médio a longo prazo para a saúde da população. A vacina, atualmente, é a única arma que temos contra a COVID-19.

 

Referências:

[1] https://www.amjmed.com/article/S0002-9343(20)30673-2/fulltext

[2] https://www.amjmed.com/article/S0002-9343(20)30673-2/fulltext

[3] https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/the-american-journal-of-medicine-defende-tratamento-preventivo-para-covid

[4] https://redcap.saude.gov.br/surveys/?s=3PRKP3CAJ3

[5] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/01/21/aplicativo-de-ministerio-que-recomenda-tratamento-precoce-para-covid-19-sai-do-ar.ghtml

[6] https://yourlocalepidemiologist.substack.com/p/covid19-drugs

[7] https://www.ems.com.br/arquivos/produtos/bulas/bula_ivermectina_50325_1639.pdf

[8] https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/medicos-alertam-sobre-uso-de-ivermectina-contra-covid-19-apos-suspeita-de-paciente-com-hepatite-aguda-24877414?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=O%20Globo

[9] https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/tables/table-2c/

[10] https://infectologia.org.br/2020/07/17/atualizacao-sobre-a-hidroxicloroquina-no-tratamento-precoce-da-covid-19/

 

 

Autores (ordem alfabética):

Ikaro Alves de Andrade – Doutorando em Biologia Microbiana na Universidade de Brasília.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9506665216259271

José Lourenço dos Santos Cunha e Silva – Doutorando em Biotecnologia pela Universidade de São Paulo / Instituto Butantan / Instituto de Pesquisas Tecnológicas.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9733184145131356

Mateus Vinícius Nascimento da Silva – Mestrando em Química na Universidade Federal de Itajubá.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9983429832439951